sábado, 26 de março de 2011

Blessed be.


Foto: Louise-Bourgeois fotografada por Annie-Leibovitz.

A borboleta confundia-se nos cabelos brancos, branco puríssimo que era, como que dizendo ‘Deus te abençoe!’... E como ele tem abençoado, tem abençoado a velhinha por quase oitenta anos, permitindo que continue andando, mesmo com pernas quase inexistentes, magérrima que é.

Ia ela se curvando, na saída de um açougue, fechando-se como uma flor em botão, corcunda que era, ‘inflorescendo’, e foi então que a borboleta reconhecera-a, abençoando-lhe. Andando no processo contrário da flor ela caminha para uma eternidade desconhecida, ou talvez, inexistente. Mas nós sabemos o que lhe ocorreria: faria parte da terra, como outras flores. E talvez por isso se fechasse em botão.

A pureza do branco, da borboleta branca, do cabelo branco... Todo um preparo para o futuro certo, certamente. A benção divina ficaria então para o próximo florescimento - o onisciente.

Mas ela estava perdendo o perfume, ou melhor, guardando-o. O cheiro dos cemitérios, vou segredar-lhes, é o dos botões que ainda irão brotar, são perfumes guardados por séculos. Existem muitas borboletas por lá.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Está um pouco nublado.




‘Eu disse a ele que me sentia uma garota cega na janela. Acho que eu sempre vou querer vê-lo de longe, mas eu não vou poder olhar porque isso me doeria muito. E eu sempre vou desejar o melhor a ele, e eu não pretendo amá-lo para sempre, mas por enquanto eu o amo, e por enquanto eu observo de longe sem ver.' K.T.

É que, bem, eu nem mesmo queria, e disse isso a ele... Seria tão mais fácil culpá-lo pela insistência, do modo como me culpo agora por ter cedido. Estava vazia, incompleta, sim, mas norteada, direcionada; ele não tinha nada que...

O que acontece é que agora não adianta mais, estou cega e presa. Presa dentro dos limites possíveis que não me permitem agir e comandar de acordo com a minha vontade; e ainda que ele fosse mal, que fosse hipócrita - eu poderia mandar prendê-lo. Mas ele não é ! O que torna todo o mal já feito em erros e ‘impretensões’ de minha parte. Sinto dizer-lhe, mas mulheres jamais podem ser culpadas.

Por Deus, eu havia me exorcizado tantas vezes por pecados alheios que nem me é possível contabilizá-los novamente; houve tanta dor lasciva e mal formada de amor adolescente, porém, agora eu sou mulher e então dói mais. Dói como fracasso pessoal e perda financeira. Coração não se refaz assim do zero, então vou lhe contar a história da menina que morava dentro dele, quem sabe assim acabo reconstruindo-o:

‘Ela havia nascido um pouco cega, não havia muito espaço para o próprio crescimento, o lugar era bastante apertado e ao invés de se expandir, regredia cada vez mais, se apertando em dor de medo, e a menina ia sofrendo. Como era pequenina, na primeira expansão já se foi correndo, ingênua, ia crescendo e enxergando cada vez mais – os olhos, mal acostumados, iam míopes e ela acabou sofrendo grande queda, machucou-se, doeu muito. O lugar de nascimento regrediu um pouco, mas não havia muito que fazer: a primeira e grande expansão é para sempre, algumas paredes se quebram, sempre dói, mas é para sempre. Então, a menina pequenina se aquietou, viveu sua nova vida, sob as perspectivas de sua nova expansão, reconstruindo e construindo tudo aos poucos, focada. Foco também incide em um pouco de cegueira, é como olhar sem ver, deste modo, porém, as coisas poderiam continuar, o que se encaixa dentro do conceito de bom e permitido.

Permissão?! Não, nunca houve permissão, esse lugar onde a pequenina morava vivia meio aberto e meio fechado, em uma convulsão de sístoles e diástoles, ao que ela sobrevivia... A última vez que aconteceu tornou as coisas piores, ela, já calejada, correu com maior obstinação, no puro risco de se perder, mas coexistindo com a fé, o que por si só era a segurança. Correu tanto, mas por pouco tempo, dessa vez nem caiu, estancaram-na; não lhe deixaram continuar o caminho que seus pés queriam traçar. O caminho veio e ela o havia escolhido, estava pronta, mas desta vez não lhe permitiram.

Ela voltou sozinha, desta vez, vagarosamente, com olhar baixo, para o chão. As janelas do lugar se embaçaram todas, não havia como comprimir. Ela queria continuar olhando para o caminho que havia escolhido que não mais lhe pertencia, então ela não poderia enxergar. Nunca podemos enxergar aquilo que não é nosso, os olhos querem capturar, como fotografias, e fica como algo inexistente, esperança esfumaçada. Então a menina ficou cega de vez, cega de ‘inesperança’, cega de não pertencer. Continua vivendo, sim, não se sabe até quando... Ela guardou o caminho em algum lugar, mesmo sem enxergá-lo, da próxima vez será necessário desmatar muito mais e gerar uma nova trilha, a cada vez ela aprende a enxergar novamente, mesmo cega, enxerga com seu próprio corpo e vontade, afinal, depois de algumas vezes não precisamos mais dos olhos.’

- Poderia parar no próximo ponto, por favor? Está um pouco nublado, daqui eu não posso enxergar muito bem...