segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Agora sei que terei sorte no amor.


Pois que a freira estava com os dedos todos envoltos em esparadrapo, ao que me confidenciou: fruto de uma suposta alergia nos ossos. - ‘Pois você consegue acreditar que o médico ainda queria operar-me os olhos com catarata?! Ainda mais com esta alergia. ’ – e eu que fiquei sem entender a relação entre uma coisa e outra, os ossos e os olhos. E ela que quase não me enxergava. Era a irmã Lorença - ‘poucas têm esse nome’, demonstrando- se - me única. E eu que há alguns minutos lia 'O Príncipe', de Maquiavel, dedicado a Lorenzzo. Fiz questão de lhe contar a coincidência!

Lorença dedicara toda a sua vida ao convento, desde os 19. Foram 67 anos, de modo que agora possuía 86, derrubando óculos e botões no chão – era a alergia que afetava os dedos. E falava tão baixinho que eu sempre precisava tirar a alma do corpo para poder ouvi-la. A minha vontade de ‘puxar conversa’ concretizara-se justamente quando ela derrubou a lente de um óculos antigo (suponho que fosse desastrada além do problema nos ossos)... Conversa vai, conversa vem, estávamos em uma rodoviária e eu me preparava para o feriado e a volta ao lar, cansado que estava da cidade grande e das mazelas do mundo. Ela, toda indignada, além dos disparates do médico, que queria operar-lhe, desacreditava de uma informação sobre os ônibus que certa atendente lhe dera: - ‘Pois você acredita que ela disse não haver vagas nos ônibus até o dia 18? Isso nunca aconteceu, esses ônibus foram sempre vazios, jamais se encheriam do nada!’. Estive incerto novamente sobre o tempo em que ela não utilizava daqueles ônibus. Viera do Espírito Santo (uma coincidência metafórica) e fora viver em Santa Catarina, ‘uma viagem que durou 11 dias’. Entendi como uma procissão.

Disse-lhe que eu procurava acreditar nas pessoas e não questioná-las muito, assim como não questionamos o Deus. Ela parou, pensativa: - ‘cada um do seu modo!’. Contou-me então de um fato que considerava estranho: sua vontade de nunca casar. Nunca quis casar aos 19, gostava dos rapazes, mas nunca quis casar, então quis ser freira. Houve um rapaz: ‘porque naquele tempo as coisas eram diferentes, ele ter falado com meu pai já era meio caminho andado’; ‘eu não poderia dizer não, se ele quisesse, que fosse lá em casa, mas eu não queria conversar, ficava mesmo era jogando baralho com meus irmãos mais velhos!’. Lorença partiu o coração do moço e foi embora de casa. Passaram-se 67 anos desde então.

A idade em que ela não quis casar e coincidentemente (novamente) a minha própria idade, onde procuro um amor. Confidenciei-lhe, inclusive minha desesperança, de nunca encontrar alguém; de querer ter filhos; ter casa; casar aos 30; amar e amar e amar. Ela achou bonito: ‘cada um do seu modo!’. Perguntou meu nome: ‘Vou rezar, eu sempre rezo, é minha obrigação!’. Logo em seguida disse que me esqueceria o nome: ‘mas só de olhar sua feição, sim, me lembrarei do seu rosto e o Pai, sim, o Pai saberá, e eu sei que dará tudo certo!’. Então agora eu sei que terei sorte no amor!

Vou rezar também por ela! Ainda que não por costume ou obrigação, vou rezar para que sua ‘alergia nos ossos' sare e para que ela encontre médicos ‘mais sensatos’ (veja só!); também para que seja muito feliz, e para que não se esqueça de pedir por mim e por meu amor, que não sei onde está. Mas eu sei que ela vai se lembrar de mim: olhou fundo nos meus olhos, ainda que pouco enxergasse.

domingo, 24 de julho de 2011

Balada dos garotos afogados.


Algumas vezes eles se afogam sim, e é incrível como jamais conseguem voltar. O beijo sufocante da morte os leva, as pálpebras cerradas, e a dor continua restante. Muita dor. Isto é injusto, deveria ser acordado, anteriormente ao trato, que quando não mais vivessem a dor deveria cessar, proporcionalmente aos batimentos. Seria o mesmo acordo da rosa em botão que leva consigo o perfume.

Mas estes garotos continuam flutuantes - o coração de suas mães transborda e seus pais perdem o prumo. A dor continuará; é nauseante, é nauseante. Afogaram-se, mágoa, dor. Como os garotos sofreram, como! Tudo continua escuro, como um barco na ressaca, sem rumo em uma noite escura. Isto é errado. Os garotos deveriam descansar.

Ainda não se sabe muito bem e nem nunca se saberá; são esperanças eternas, cortadas na raiz, de maneira silenciosa...

Não há som, não há ar, nem há luz. Não existirá o amanhã, apenas a balada dos garotos afogados, flutuantes...

Deus os salve.

God save them.

domingo, 19 de junho de 2011

Um velório.


Colocaram-na sentada em frente ao caixão da filha morta. Estava com meia-calça até os joelhos, uma bengala na mão direita e os olhos, por trás dos óculos, pousados sobre nada. Era uma velhinha conhecida na cidade, a filha então, conhecidíssima, pois que o cemitério-velho estava cheio. Os habitantes, em sua maioria, com as melhores roupas e sapatos. Era inverno.

Achava tudo lindo, as flores, o local, as pessoas... Flores são sempre bonitas, era agradável ver tantas reunidas. Não compreendia, já fazia algum tempo que a mente repousava na infância - chamava sempre pela mãe, que nunca comparecia... – Não notara a filha morta, nem se lembrava mais de sua existência; via as pessoas todas chorando, sim, mas a única compreensão é de que talvez não estivessem encontrando as próprias mães também, algo que lhe parecia comum nos últimos tempos.

Conversas paralelas sobre nada, comuns, recheavam o lugar, presença completa dos cidadãos ilustremente preocupados com o próprio umbigo, via-se pelos sapatos 'bordadíssimos', era inverno e um velório seria um lugar interessante para mostrá-los...

O enterro saía, certa marcha o acompanhava. Levantaram a velhinha e a levaram dali, era hora de ir embora. No chão, na saída, sobraram alguns grampos de cabelo, grampos comumente usados pelas senhorinhas, tantas outras que também haviam perdido as mães, mas que choravam por outros motivos – não lhes era permitido chamar pelas mães, seria loucura...

E a velhinha, que nem percebeu, continuou achando tudo muito bonito. Talvez algum dia se lembrasse da filha, talvez não, sua única preocupação agora era achar a mãe.

domingo, 8 de maio de 2011

Control yourself.


'Take only what you need from them'.

Que a gente quer ser sempre o melhor da gente, o melhor do que nossas mãos poderiam um dia fazer. Nos alongarmos mais do que os braços e pontas das unhas permitem-se: crescer, crescerrrrr! Então você se alonga e estrala todo - advertências corporais. O mesmo da personalidade, do coração que adoece e entristece, do cérebro que 'incha' e nem sabe mais para que direção comandar o corpo. Enchemo-nos de teorias e arbitrariedades para poder afirmar positivamente 'Tenho noção do próximo passo a ser dado', mas esticar a perna, AH, você nunca estica.

Sempre critiquei os que nunca pensavam sobre, e que apenas respiravam. Está certo que eles sempre machucam os outros, de modos parvos, mas olhe só: também machuco. E machuco-me, o que na meu egoísmo vital dói demais. Pois que fechei os olhos e me arremessei, estou na vida desde então, fazendo o máximo do que jamais poderia. Sendo-me, ainda que impossibilitado por mim mesmo o tempo todo. AH, a ficção. Pois que 'ficcionamo-nos' até o desconhecimento.

Ainda não devo fechar meu livro, terminarei-o no meu para sempre. Apenas quando ele chegar e quando eu não mais esperar por 'minha própria vinda'. Quando for possível tornar-me eu que não seja outro, mas o mim mesmo.

BRAINSTORM, so I'm so sorry.




sábado, 16 de abril de 2011

Seria um anjo se pudesse.


A sensação era a mesma da invasão da agulha enquanto tirava sangue, as enfermeiras perfuravam certeiras, a diferença é que era permissivo. Os outros não se importavam tanto antes de invadir-lhe, eram incisivos mesmo - não lhe permitiam que dissesse não. Era sempre sim, sim, sim, SIM. Quase que em obrigação era pressuposto que ele havia aceitado sua condição, condição desconhecida dele, mas que os outros sempre reconheciam.

Pois que sua inocência era mentira: 'ninguém pode ser deste modo!', pois que ele era ninguém, sempre fora, ainda que não lhe permitissem. Era tão belo como um não em uma sala positiva, ainda contrariando o poeta e a ordem, como sempre, na rebeldia que não era heróica, era vilã. Se ao menos fosse vilão por inteiro, ainda existiria certa cota de perdão, mas também não lhe era permitido - ' Imagine só?! Idiotinha, mal?! Pudera!'. Acabava sendo nada, como sempre.

Se quer saber, a culpa também era dele. Não se bastava, nunca. Ainda que obtivesse a maior sorte do mundo, do mundo, 'Oh, mas ainda existiria o azar!' - então era incompleto. Os que não se bastam se cavam, se corroem. 'Ao menos se fosse como os outros!' - sempre se dizia, sempre lhe diziam. Estes outros intermináveis. Lhe restava certa confiança no futuro, era bem verdade, confiança de que um dia iria acontecer, sim, acontecer. Não eram poucas as vezes em que vira isso, as pessoas 'acontecem' o tempo todo... Mas ainda era parte do 'não se bastar', e talvez se corroesse novamente caso acontecesse de um dia acontecer.

Tomara Deus, algum dia os 'meio-termo' sejam permitidos, os que não escolhem, os que não germinam, os que 'caem pela metade'. Seria um anjo se pudesse, o anjo era o mínimo, era a essência. Essência não se corrói, então seria completo, pleno. Seria um anjo se pudesse.


sábado, 26 de março de 2011

Blessed be.


Foto: Louise-Bourgeois fotografada por Annie-Leibovitz.

A borboleta confundia-se nos cabelos brancos, branco puríssimo que era, como que dizendo ‘Deus te abençoe!’... E como ele tem abençoado, tem abençoado a velhinha por quase oitenta anos, permitindo que continue andando, mesmo com pernas quase inexistentes, magérrima que é.

Ia ela se curvando, na saída de um açougue, fechando-se como uma flor em botão, corcunda que era, ‘inflorescendo’, e foi então que a borboleta reconhecera-a, abençoando-lhe. Andando no processo contrário da flor ela caminha para uma eternidade desconhecida, ou talvez, inexistente. Mas nós sabemos o que lhe ocorreria: faria parte da terra, como outras flores. E talvez por isso se fechasse em botão.

A pureza do branco, da borboleta branca, do cabelo branco... Todo um preparo para o futuro certo, certamente. A benção divina ficaria então para o próximo florescimento - o onisciente.

Mas ela estava perdendo o perfume, ou melhor, guardando-o. O cheiro dos cemitérios, vou segredar-lhes, é o dos botões que ainda irão brotar, são perfumes guardados por séculos. Existem muitas borboletas por lá.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Está um pouco nublado.




‘Eu disse a ele que me sentia uma garota cega na janela. Acho que eu sempre vou querer vê-lo de longe, mas eu não vou poder olhar porque isso me doeria muito. E eu sempre vou desejar o melhor a ele, e eu não pretendo amá-lo para sempre, mas por enquanto eu o amo, e por enquanto eu observo de longe sem ver.' K.T.

É que, bem, eu nem mesmo queria, e disse isso a ele... Seria tão mais fácil culpá-lo pela insistência, do modo como me culpo agora por ter cedido. Estava vazia, incompleta, sim, mas norteada, direcionada; ele não tinha nada que...

O que acontece é que agora não adianta mais, estou cega e presa. Presa dentro dos limites possíveis que não me permitem agir e comandar de acordo com a minha vontade; e ainda que ele fosse mal, que fosse hipócrita - eu poderia mandar prendê-lo. Mas ele não é ! O que torna todo o mal já feito em erros e ‘impretensões’ de minha parte. Sinto dizer-lhe, mas mulheres jamais podem ser culpadas.

Por Deus, eu havia me exorcizado tantas vezes por pecados alheios que nem me é possível contabilizá-los novamente; houve tanta dor lasciva e mal formada de amor adolescente, porém, agora eu sou mulher e então dói mais. Dói como fracasso pessoal e perda financeira. Coração não se refaz assim do zero, então vou lhe contar a história da menina que morava dentro dele, quem sabe assim acabo reconstruindo-o:

‘Ela havia nascido um pouco cega, não havia muito espaço para o próprio crescimento, o lugar era bastante apertado e ao invés de se expandir, regredia cada vez mais, se apertando em dor de medo, e a menina ia sofrendo. Como era pequenina, na primeira expansão já se foi correndo, ingênua, ia crescendo e enxergando cada vez mais – os olhos, mal acostumados, iam míopes e ela acabou sofrendo grande queda, machucou-se, doeu muito. O lugar de nascimento regrediu um pouco, mas não havia muito que fazer: a primeira e grande expansão é para sempre, algumas paredes se quebram, sempre dói, mas é para sempre. Então, a menina pequenina se aquietou, viveu sua nova vida, sob as perspectivas de sua nova expansão, reconstruindo e construindo tudo aos poucos, focada. Foco também incide em um pouco de cegueira, é como olhar sem ver, deste modo, porém, as coisas poderiam continuar, o que se encaixa dentro do conceito de bom e permitido.

Permissão?! Não, nunca houve permissão, esse lugar onde a pequenina morava vivia meio aberto e meio fechado, em uma convulsão de sístoles e diástoles, ao que ela sobrevivia... A última vez que aconteceu tornou as coisas piores, ela, já calejada, correu com maior obstinação, no puro risco de se perder, mas coexistindo com a fé, o que por si só era a segurança. Correu tanto, mas por pouco tempo, dessa vez nem caiu, estancaram-na; não lhe deixaram continuar o caminho que seus pés queriam traçar. O caminho veio e ela o havia escolhido, estava pronta, mas desta vez não lhe permitiram.

Ela voltou sozinha, desta vez, vagarosamente, com olhar baixo, para o chão. As janelas do lugar se embaçaram todas, não havia como comprimir. Ela queria continuar olhando para o caminho que havia escolhido que não mais lhe pertencia, então ela não poderia enxergar. Nunca podemos enxergar aquilo que não é nosso, os olhos querem capturar, como fotografias, e fica como algo inexistente, esperança esfumaçada. Então a menina ficou cega de vez, cega de ‘inesperança’, cega de não pertencer. Continua vivendo, sim, não se sabe até quando... Ela guardou o caminho em algum lugar, mesmo sem enxergá-lo, da próxima vez será necessário desmatar muito mais e gerar uma nova trilha, a cada vez ela aprende a enxergar novamente, mesmo cega, enxerga com seu próprio corpo e vontade, afinal, depois de algumas vezes não precisamos mais dos olhos.’

- Poderia parar no próximo ponto, por favor? Está um pouco nublado, daqui eu não posso enxergar muito bem...

sábado, 1 de janeiro de 2011

Mme. Okada



E mesmo as borboletas mais deslumbrantes perdem o viço. Mme. Okada era uma artista, de mãos pequenas que resultavam em vestidos maravilhosos, de uma perfeita compostura, ao menos do modo como minha mãe a conheceu.

Não sei explicar muito bem o que vi: era apenas uma senhora levemente curvada com os cabelos mal pintados. Realidades e visões muito distintas se cruzaram: a expectativa e espanto de minha mãe com o meu olhar ao imperceptível. Mme. Okada era uma artista que envelheceu.

Artistas envelhecidos são algo dolorido, a arte rouba-lhes a juventude e não lhes devolve, por mais que fabriquem beleza a aparência geral é de uma casa sempre vazia. Okada não me demonstrou nada, ao que os olhos de minha mãe brilharam: ela havia sido responsável pelo deslumbre da 'boa sociedade' da década de 60, Okada vestia a beleza.

Talvez ela não tenha sido uma lagarta, artistas costumam pular etapas, ao que me parece ela possuía nas mãos o mais fino corte, imprescindível, produzindo a arte com simples panos e sem maior grau de instrução. Foram outras épocas, o talento precisava ser dominado e então era reconhecido, não havia necessidade de agradar ao comercial, apenas acontecia-se. É uma pena não ter conseguido encontrar essa expectativa na velha sra. Okada.

Ao saber a história, que nem me fora contada [foram apenas palavras e sensações soltas], minha vontade era voltar correndo e chacoalha-la, fazê-la levantar vôo novamente, transparecer a artista dos outros tempos. Talvez ela estivesse apenas cansada, o cansaço ainda iria levá-la... Mme. Okada caminhava por uma rua cheia de lojas, com roupas de fábricas e confecções, ninguém a conhecia, nunca haviam ouvido falar. Ela fora vencida, o talento e a irreverência, a originalidade, haviam sido vencidos por araras cheias de peças iguais, sem trato, industriais. Os vestidos de anteontem foram corroídos também, junto com a velha senhora anônima.

Queria que Mme. Okada voasse, mesmo que com asas de tecido, que mostrasse o seu valor. Que ensinasse para aquela gente o que era talento e o corte fino, e arte dos tecidos, mas ela já estava muito cansada, continuou caminhando, levemente curvada, japonesa e anônima, como um sorriso no Japão.