quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Bolo de festa


Ela chegou em casa e descalçou os sapatos. Foi até o aparelho de som e colocou o Cd que nunca ouvia - era triste demais. Deitou-se na cama e fechou os olhos, brevemente...

As pálpebras tornaram-se pétalas, ela começou a flutuar em um rio cristalino de planície, não havia som algum... Passara muito tempo flutuando... Quando, de repente, afundou, sem se afogar, naquele desespero resignado de perder-se; sem dor, indo mais e mais fundo.
O Cd acabou.

Levantou-se, mecânica - não era dor o que sentia, era uma espécie de constrangimento por não pertencer - não desejava se libertar, a grande verdade é que não era direito seu. Não era importante, e para os anônimos o destino é sempre comum.

Caminhou pela casa em passos leves, sem intensão. A crueldade só se enquadra quando existe aflição e dor; dor não havia. Piscou vagarosamente e procurou não pensar. Ligou o Cd novamente e foi para a cozinha - ladrilhos da cor laranja que ela mesma escolhera para dar vida ao ambiente - resolveu preparar um bolo, branco, de festa.

Preparou-o, sem ímpeto algum de cozinheira, por mais mãe e esposa que fosse. Colocara o mínimo de açúcar possível, somente o cheiro deveria ser doce. Continuava mecânica. Eram 16 horas e 5 minutos.

Regou as plantas e abriu as portas da varanda - fora o apartamento dos sonhos, quitado no último ano - entrava uma brisa. Sentiu frio.

O Cd terminou novamente, ela desligou o som. O bolo estava assado. Decorou-o e o colocou no refrigerador. Assustou-se um pouco, nunca pertencera à solidão, mas naquele momento era o seu único pertence. Ela se sentiu ausente em sua própria casa, respirava exausta. Apenas o silêncio era bom, foram 40 anos e ela não havia percebido isso.

Entrou no quarto, os chinelos, despreocupadamente, estavam virados para baixo. Adormeceu no silêncio - um longo tempo...

Abriu os olhos, a claridade lhe cegou temporariamente. Ouviu-se um apito agudo e pausado, que manteve certa constante. As pálpebras tornaram-se pétalas e ela submergiu profundamente.

Nunca mais acordou, o bolo de festa nunca foi comido.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Janelas.




Ela acreditava que os outros deveriam olhar mais pela janela, sem se perguntar e nem saber porquê. A ideia era consistente e ela pregava aquilo como se tratasse de uma religião. E para dizer bem, era verdade, acabava consistindo em uma revolução de valores, tal qual as religiões são.

Janelas sempre possibilitam atividades diversas: desde a limpeza dos vidros até o suicídio. Chegara mesmo a ouvir sobre santas que apareceram em janelas - o que reforçava sua tese. São mais interessantes do que portas, por exemplo, até por não exigirem permissão, afinal, não existe a necessidade caseira de se sair ou entrar, pode-se participar de janelas sem pertencê-las ou pertencer a elas.

Detestava defenestradores; achava um crime que se atirassem coisas pelas janelas, se bem que tivesse atirado flores algumas vezes... Mas isso era divertido, então nem contava. Jogar lixo é que era ruim, era maldade que muita gente fazia.

Vivia pensando sobre a origem etimológica da palavra - JANELA - mas não procurava em dicionários, eram frustrantes e estragavam a linha do pensamento. Até que depois de muito pensar chegou à uma conclusão que lhe pareceu lógica: Janela = jante com ela, ou nela. E ainda que a ideia tivesse vindo de um comercial antigo da Coca-Cola era irrefutável, afinal, bons fregueses sempre escolhem mesas na janela e família que é família sempre faz suas refeições perto de uma.

Seu grande sonho era morar em uma casa onde existissem apenas janelas, para sentir-se liberta e encontrar seu lugar no mundo... ------------ sua mãe já lhe cortou a ideia:

- Meninaaaa! Pare de besteiras e vá dormir logo! E feche esta janela, está frio!

Acontece que criança só se aquieta momentaneamente, pois continua remoendo o pensamento, e a menina guardou o sonho. Ela reabriria a janela no dia seguinte, e nos dias seguintes até o fim dos tempos em que se pudessem abrir janelas. Novamente, novamente e novamente.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Sobre os anjos que não possuem asas.

Então eu estava esperando que o ônibus passasse. Esperar um ônibus exige resignação intensa, é uma espécie de destino passivo. Ainda faltava uma hora e como era um terminal sentei-me em um banco. Velhinhos gostam de conversar.

Deve ter começado com uma pergunta inóqua, algo sobre o tempo ou sobre a demora dos ônibus... E ela começou a me contar parte de sua vida, chamava-se Ermelinda. Na primeira pausa já anunciei meu espanto: ela possuía olhos com cores diferentes, um era azul e o outro cor de mel. Das características exóticas que anjos precisam ter para que saibamos que são anjos.

Conversamos ainda algum tempo, ela me contou sobre sua família, sobre sua neta que tanto amava, sobre sua filha, sobre a limpeza árdua da casa. Contou-me sobre a vida e sobre os modos de como se viver. Seu ônibus não demorou e então ela se foi, do modo como anjos devem fazer. Era muito doce, não havia qualquer ansiedade, apenas paciência. Serenidade.

Ela me acalmou de tal maneira que nem consigo descrever, e eu nem estava agitado. A conclusão de que ela era um anjo é ininteligível, eu apenas soube e ela simplesmente era.

Nunca mais a verei. Talvez nunca mais veja anjos. Talvez eles não existam para muitos, mas ela possuía coração. E os olhos mais bonitos que já vi.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Maior idade.


Eu bem poderia dizer que não muda nada, mas é uma data e leis que agora são aplicadas a mim. Esta data, mesmo que mecânica e imutável, demarca sim, todo o meu crescimento ou regressão; assim como as linhas da minha face e todas as cicatrizes e machucados que tive. É tudo o que me possibilita adentrar para a 'maior idade'. É a justificativa para todas leis e ordens que a partir de hoje também se direcionam a mim. Não sou mais intransponível, impune.

As vantagens que me são asseguradas, para não tornar o todo tão ruim, para mim de nada valem. Pilotar um veículo automotivo não faz de ninguém melhor ou pior, tampouco independente (sem postos de gasolina ou mecânicos, continua-se dependente das próprias pernas, como todos os outros). Pequenos erros e distrações também podem ser mortais sob esta perspectiva, mas é isto o que a maioria deseja: tornar-se mais imponente, mais perigoso. Então regam o volante com bebidas, para diminuir o medo, a própria segurança instintiva. "O homem se engana tanto".

Existe um outro lado, um lado seguro. Tornar-me doador por própria vontade, ajudar a salvar, ao invés de incutir mais perigo ao mundo. Pode parecer heroísmo romântico, mas não é mais do que obrigação - com o futuro e pela possibilidade de algum dia precisarmos. Também é egocêntrico pelo fato de sermos frágeis. É uma linha necessária, mas que vive esquecida.

Não, não muda nada realmente. Não muda nada se você não decidir que suas mãos também podem auxiliar. Não muda nada se você continuar só, se somente acrescentar-se a grande parcela. Aos 18, você será apenas mais um adulto respirando no mundo. Mais um motorista emitindo monóxido de carbono nos ares das cidades. Mais um eleitor cego. Não muda nada se você não der um salto mental. Não muda nada se você não mudar.

O mundo é infinito de possibilidades e escolhas, eu não posso impor as minhas sobre ninguém. Hoje sou mais um adulto, e por toda essa carga de responsabilidade social, eu quero fazer jus. Quero provar para mim mesmo, mais do que ao resto, que os anos pelos quais passei trouxeram aprendizado. Que eu posso ser homem no verdadeiro sentido: o da hombridade. Do homem que conhece seus direitos e deveres. Mais do que a lei imposta e mal organizada. Mais do que carros e coisas que eu possa comprar. Mais do que cartões de crédito ou contas em banco. Para aquele que está em um hospital, e nunca saberá quem sou, quem fui, o que fiz ou que carro tenho. Mas que terá sangue meu nas veias. É para ele que eu dedico os meus 18 anos. Minha maior idade.

domingo, 20 de junho de 2010

É que eu quero agradecer e muito pelo fato de poder enxergar. Pelo fato de não viver no escuro e poder ouvir. Pelo fato de apreciar a música e poder cheirar. Por ver, sentir, e ouvir o canto das flores. Mas é que eu não sei bem ao que agradecer, então eu estou naquele estado de glória pura. Da emoção fluida na própria coisa. E eu não posso agradecer a Deus sem criminalizá-lo. Porque também me ocorrem coisas ruins. E se o Deus for mal eu não terei mais limites.

Nunca gostei de religionalizar o Deus, as coisas limitadas me doem e eu nunca entendo muito bem. Não que eu eu tenha chegado a entender o Deus, só pela mutabilidade isso seria impossível. Mas não gosto das responsabilidades do que não pode ser responsável. Neste mundo das sanidades nós não podemos julgar o que não concebemos. E Deus é tão inconcebível como nuvens são.

Olhe, pode parecer fora de questão e Deus não cabe na existência: eu sonho. Enfrento mundos inimagináveis e nunca vi Deus. Talvez só os anjos vejam, ou nem mesmo eles. Eles também não julgam o inconcebível, nós também não os vemos. E essa coisa de não enxergar dói tanto no humano, não enxergar. Então a fé é cega e deus é o escuro.

Por que aliar o divino à luz? E é por isso que é ininteligível. Nestas mentes confusas - e mesmo isto é confuso. E a carne não é clara e não é escura, e o intermediário é sempre sujo. As pessoas tem medo do escuro desde sempre. E quando vencem este medo não possuem mais sanidade.

Oh Deus seja claro na sua sanidade. Oh Deus não se faça na noite, pois mesmo a lua é ludibriante. Não seja o sol pois ele queima. Assim nos céus como na terra. Deus permita-se. Permita-nos.


Nostalgia litúrgica.

sábado, 1 de maio de 2010

O Sopro


Sabe, é que quando nascemos um anjo vêm e sopra-nos algo parecido com a vida - e talvez seja ela mesma - é um ar tão difícil e tão dolorido de se respirar, que a maioria chora. Mas é com esse misto de dor e susto que os dias começam a ser contados.

Então: respirar é viver; e acaba ficando tão banal que a coisa mais importante da vida é esquecida. E todos vão viver outras coisas, respirar outros ares. O que o anjo trouxe é uma coisa tão infinita que custa a acabar, o sopro fica ali para todo o sempre, até quando você for capaz de mantê-lo.

Sopra-se; assopra-se; inspira-se; expira-se; respira-se. IN - OUT. O ar entra e o ar sai. Torna-te todo movimentado compartilhando fragmentos do sopro alheio, da vida de outros anjos e de outras épocas. Respirar e viver são coisas tão universais!

Eu mesmo acho que anjos nem respiram; usam o sopro apenas para voar. Será que quando respiramos estamos voando por dentro? Deve ser por isso que o peito se infla tanto. Aliás, o tórax deve ser uma gaiola para o coração não voar. Justamente o coração que quer tanta liberdade...

Tem gente que nasce meio ao contrário, que os médicos dizem ter 'sopro no coração'. Vai ver que algum anjo privilegiou, e um sopro no coração deve torná-lo um coração de anjo. Dois sopros para uma pessoa só parecem algo insustentável. Então às vezes essas pessoas perdem o sopro da vida e ficam só com o do coração. Talvez tornem-se anjos, pois o coração já possuíam.

Dói tanto para nascer e respirar, que para morrer dói mais ainda. Respirar é tão maravilhoso que a gente nem imagina; só quando não respira mais.

sábado, 10 de abril de 2010

As Horas


Em todos os nossos atos vemos refletidos o passar das horas, isto é o que fica; é o que antecede, precede cada acontecimento. Já quando amanhece, então acordamos, as horas passam. Chega o almoço, digestão, passam - se mais horas. Jantar, horas, sono.

Bom para quem tem muitos afazeres, uma grande quantidade de horas muitas vezes não é suficiente. O tempo passa depressa e então só existe o cansaço e o sono pode ser profundo, assim é que pode - se viver. E o que aconteceria para alguém que somente pudesse ver as horas passarem? Que não pudesse aproveitá - las? Que visse os dias, os momentos, sua vida, tudo passando e não conseguisse fazer absolutamente nada? Certamente morreria. De tristeza.

Quase uma ironia do destino, que aqueles que mais pudessem aproveitar as horas com o que realmente gostariam de fazer, não o façam. São infelizes. Alguém que tenha tempo livre é infeliz. Não existe preenchimento que seja útil. E qualquer um, por mais interessante que possa parecer passa. E a vida também passa.

E sobre passagens, indas e vindas, eu me recordo de ônibus, trens, carros. Neles também são passadas muitas horas, muitas vezes improdutivas. Passa - se quase uma vida, dirigindo ou sendo dirigido, e nem ao menos sente - se o vento, a chuva. Sempre para - se nos mesmos pontos, da vida rotineira, do lugar para onde precisamos ir - não e de maneira alguma para onde queremos. O bom é que respirar não gasta tempo, senão estaríamos perdidos, mortos e velhos de vez.

Por isso mesmo que as pessoas sempre ressaltam: aproveite o seu tempo. Não deixe as horas passarem para sempre, viva - as. Cada minuto, segundo, "remelexo" do ponteiro. Passar horas é muito mais divertido do que deixá - las passar. Depois não diga: 'ah, minha vida passou!'. Passou e você nem viu, sua vida passou e você foi cego. Não, não deixe que isso aconteça com você. Não reclame do tic-tac, siga - o. O movimento é horário. Aprenda a reger as horas.

FOTO: JULIANA SORATI - Five 'n something

quinta-feira, 1 de abril de 2010

No escuro




A tarde caiu, o sol se pôs. Não acendi as luzes, continuo meus passos no escuro; percorro corredores sob o sol de uma música melancólica e inebriante. Eu já estou tão cansado de brincar. Gostaria de ter razões para continuar, me parece tudo tão tranqüilo que eu tenho medo de parar de respirar e nem ao menos perceber.

Justamente eu, que sempre quis um pouco de espaço, agora tudo parece tão espaçoso que nem as flores florescem mais. Bem, eu poderia começar do começo, mas me faltam folhas e sementes. Tudo me parece tão amável ao redor de onde me encontro, mesmo assim eu enxergo fronteiras. Acho que não poderia existir do outro lado.

Sinto cheiro de queimado, algo foi destruído - certifico - me de que não sou eu mesmo, graças a Deus eu ainda tenho sentidos! - não existira problema se eu chorasse, não tem ninguém olhando. Mas eu estou tão cansado que as minhas pálpebras doem, e o meu coração sofrega.

Eu estou tão cansado que continuo no escuro, não acenderei as luzes, a noite cairá. Então serei tomado pelas trevas, mas eu não desapareço, depois virá a luz e eu continuarei aqui. Apenas gostaria de ser alguém, para ficar marcado, para existir por mais tempo... Eu tenho espaço demais e pouco tempo. Percorro os corredores, discorro a vida.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Sou e não sou.


Sou superpoderoso, tenho minha própria consciência de tudo o que poderia fazer, tenho todos os sentidos e membros funcionando corretamente. Posso fazer coisas que talvez outros não possam, eu respiro sozinho, falo, ando, enxergo e sinto. Não, não sou. Uma bala poderia atingir - me a cabeça e então eu seria mais frágil do que um fragmento de metal. Então eu não seria nada.

Sou feito de carne, ossos, carbono (?). Do que é palpável e do que não é, ininteligível e compreensível. Paradoxalmente humano. Poderia se o que quisesse, sou regido pelo tempo. Minhas pernas são feitas para caminhadas, mesmo em caminhos inexistentes e desconhecidos. Nascer foi um desafio. Mas então, um carro poderia me atropelar e reduzir os meus músculos, tendões e cartilagens a fragmentos de cálcio partido, montes de sangue e entranhas. Eu não seria nada mais do que um corpo, um sopro.

A alma, dizem, jamais poderia ser enclausurada, o espírito é livre. O meu cérebro é incognitível, mas eu poderia ter alzheimer ou sofrer um derrame. A vida poderia seguir maravilhosa, ou terminar agora mesmo. Será que um pensamento me guiaria realmente ao infinito. Não sei.

Nas palavras de Cecília Meireles: - espero a minha própria vinda.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

That tonight is gonna be a goodnight ;)




















Eu não tive nenhum pressentimento não, foram sensações reais. Uma sexta feira que demarcou a grande importância que os meus amigos de 3 anos tiveram para mim. O espaço que cada um deixará gravado dentro do meu coração. Foi uma noite intensa e imensamente divertida, perfomances nunca antes imagináveis por estudantes e professores, antes eu imaginava, comportados.

Foi um rito de passagem de cada um para o que seremos daqui em diante, para a nossa vida quase adulta e todas as decisões que fazem parte da mesma. Então há 12 anos atrás eu não imaginava que seria com essa imensa felicidade que eu abriria as portas para a minha vida que enfim começa, para os passos que terei de trilhar sozinho. Acredito que nem um de nós nunca imaginou que a vida poderia começar apenas com bom humor.

E é para todos esses que eu amo imensamente que desejo boa sorte, encontrem seus próprios lugares.